Só me dei conta da presença do Gordo quando a garçonete passou por mim com um sanduíche de pastrami com queijo derretido, que transbordava pelo pão de centeio, e parou diante da mesa dele.
Ele mal levantou o olhar para agradecer e começou a comer. Como se fosse um esfomeado de guerra.
Eu olhava para o celular a todo momento esperando chegar uma mensagem do trabalho.
Pedi um sanduíche de língua e uma ginger soda. O Gordo bebia Coca-Cola.
Graças a Deus eu recebo um salário que permite a extravagância de comer numa lanchonete cara igual a essa.
Na casa de meus pais, comer língua significava grana curta. Hoje vou gastar o preço de uma passagem de ônibus de São Paulo para o Rio.
Eu não viajo mais de ônibus. Minha vida mudou para melhor.
O Gordo já tinha acabado o seu sanduíche antes mesmo da chegada do meu pedido.
Eu observava as fotos das fachadas de lanchonetes de outros lugares que tomavam as paredes do lugar.
Se eu entendi bem, essa lanchonete era uma franquia que existe em tudo que é lugar. De Nova York a Sidney. Eles vendem sanduíches caríssimos de carne barata em várias partes do mundo.
A garçonete trouxe meu pedido. Por mais que eu quisesse focar nas fotos das paredes, minha atenção sempre recaía no Gordo, ou então no meu celular.
Nenhuma mensagem chegou. Acho que o chefe só iria avaliar meu relatório pela manhã.
O Gordo vestia uma camisa listrada de manga curta, seus braços aparentavam uma musculatura firme. Ele ficava o tempo olhando para a mesa, tamborilando os dedos, como se a passagem do tempo o deixasse inquieto.
Achei que a língua estava fria. Não quis reclamar. Vai ver que era assim que eles servem por aqui.
O Gordo chamou a garçonete, sem olhar para ela. Apontou para um trecho do cardápio quando ela se aproximou e depois apontou para outro.
A garçonete perguntou o ponto da carne. O Gordo piscou o olho para ela, como se dissesse algo do tipo “você sabe como eu gosto”. Ela riu. Pela interação deles, julguei que fosse um cliente habitual.
O chefe me disse umas cinco vezes que aquele relatório era uma oportunidade para que eu demonstrasse minha visão estratégica e capacidade de liderar o projeto. Amanhã pela tarde, eu deveria fazer uma boa apresentação.
A garçonete entregou ao Gordo uma porção de batata frita. E um hambúrguer duplo, com queijo e bacon.
O Gordo amassou aquilo tudo com umas poucas mordidas.
Ele chamou a garçonete, mais uma vez. Fez o pedido olhando para ela. Voltou a tamborilar os dedos. Olhava para baixo de novo, como se ele estivesse com medo de me encarar.
Eu terminei meu sanduíche de língua e minha ginger soda.
Não me atrevia a sair. Queria descobrir qual era o próximo pedido do Gordo. Sentia também uma certa prostração, uma preguiça de chamar o uber.
Eu batalhei muito para chegar na posição em que estou agora. Estou pronto para dar o próximo passo.
A garçonete trouxe uma sobremesa de torta de chocolate com sorvete de creme para o Gordo. Ele suspirou antes de dar a primeira colherada e passou a atacar o prato com aquela velocidade já reconhecida por mim.
Uma mulher sentou ao lado do Gordo. Era tão grande quanto ele.
A Gorda deu um beijo no pescoço do Gordo e ficou lhe fazendo carinhos na bochecha e logo depois cafunés nos cabelos. Os braços dela eram tomados por tatuagens.
A garçonete lhe entregou um cardápio. Escutei a Gorda dizer que só queria água da casa.
O Gordo só se virou para falar com a Gorda quando acabou a sobremesa. Ela limpou com a mão um pouco de sorvete que tinha ficado nos lábios dele.
Ele disse algo que não consegui escutar. Ela riu com todo o corpo.
O Gordo deu um beijo demorado de língua na Gorda.
Era demais para mim.
Me levantei para pagar a conta diretamente no caixa. Quando passei pelo casal, não me contive e olhei para eles. Os dois sorriram para mim.
Em casa, as coisas estavam como eu deixei.
Lavei a louça, recolhi todas as roupas sujas e as coloquei no cesto.
Guardei as caixas de areia vazias em um armário que fica na área de serviço.
Por um instante, fiquei olhando ao meu redor para ver se tinha esquecido de fazer alguma coisa.
Amanhã vou ter um dia cheio.
Olhei mais uma vez para o celular. Havia uma mensagem: de uma operadora telefônica me oferecendo uma promoção.
Preciso dormir logo.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
A fotografia que ilustra o conto é de Rodrigo Sombra.
A newsletter tem uma playlist no Spotify. A seleção é aleatória e um tanto nonsense.
Na foto registrada por R. N. Johnson, você vê o escritor Denis Johnson (1949-2017), estadunidense nascido na Alemanha . Ele escreveu os contos de “Filho de Jesus (publicado no Brasil pela Todavia)”. É o livro que estou lendo agora.
O título do livro é retirado de um verso da música “Heroin”, do Velvet Underground, que abre a playlist.
Abraços :)
A vida do Gordo é bem mais interessante (e prazerosa) do que a jornada de trabalho do executivo.
Me prendeu até a última linha 😍 Adorei