Tito colecionava figurinhas, times de botão, camisas, revistas, canecas, escovas de dente com distintivos, e tudo o que vagamente lembrava futebol. Era tímido. Uma timidez estimulada pela mãe, que o impedia de brincar na rua. Pai velho, você é muito bestinha para andar com pivete, ela dizia.
Às vezes, Tito desviava do caminho de volta da escola e entrava no Centro Social Urbano de Pernambués. Passava pelo posto de saúde, pela biblioteca interditada, pela praça dominada pelos skatistas, e entrava na área dos fundos, onde estavam a quadra de cimento e, logo depois, o campo de terra batida. Sentava na arquibancada e assistia aos babas. Para cada passe errado ou chute desperdiçado Tito elaborava na mente o lance correto e seu pé esquerdo mimetizava os movimentos: aquela jogada mereceria uma trivela, essa outra, um chute de peito de pé, e para aquela, na intermediária, um nó de carroceiro bastava.
Se era capaz de imaginar, era capaz de fazer.
Em um fim de tarde, naquela hora agradável em que começa a ventar um pouco e as rajadas do sol nos atingem com a delicadeza de mãos maternas, Tito se levantou da arquibancada do campo de terra batida e começou a andar para casa, com passos rápidos, como se tivesse em campo se posicionando para receber o melhor passe. Meninos da sua idade jogavam na quadra de cimento, ele interrompeu os passos para observá-los. Um grosso deu uma bicuda e a bola caiu no campo de terra batida, distante trinta metros. Enquanto a bola era resgatada, um menino troncudo com uma barriga proeminente se aproximou de Tito.
Tudo bem, camarada?
Tudo.
Tá fazendo o quê?
Só olhando.
Quer jogar com a gente?
Antes que Tito pudesse responder, o menino enlaçou seu corpo com um braço e lhe deu uma joelhada na barriga e ainda aplicou uma rasteira. Tito caiu de cara no chão. Os outros meninos começaram a rir. Eles riam cada vez mais alto... Tito não conseguia se mexer, pois sua mochila estava cheia de livros, estojos e a merendeira e tudo aquilo o esmagava de encontro ao chão. O menino lhe deu um chute na altura do estômago enquanto a bola voltava para a quadra. Tchau, Seu Zé, o menino disse, e voltou a jogar bola.
Tito se agachou esfregando a barriga, e então se levantou e começou a correr, como nunca tinha corrido antes, enquanto era perseguido pelas gargalhadas dos meninos...
Muito tempo depois, Tito esperava um ônibus para ir à faculdade de Direito. Era uma manhã nublada, resultado de uma madrugada chuvosa. No ponto de ônibus, uma mulher vendia bolos de carimã, aipim, chocolate (de longe, o menos gostoso), mugunzá, café puro, café com leite, e mingau de tapioca. Tito gostava de mingau de tapioca com muita canela por cima. Gostava também daquele bolo de tapioca cremoso, com gominhas que ficavam rolando na língua até dissolver. Estava feliz, pois logo mais faria a última prova de direito penal, disciplina que dominava em todos os pormenores. Ao desistir do futebol, para o qual nunca levou jeito, Tito optou por ser advogado criminalista, um desejo alimentado pela visão de dezenas de filmes americanos de julgamento, durante a adolescência.
O ônibus demorava como de costume. O ponto não estava muito cheio. A prova seria no último período, e Tito desconhecia a ansiedade. Um rapaz chegou ao ponto, sem camisa, montado em uma bicicleta que freou aspergindo respingos de lama nas calças de Tito. Tito olhou para as calças e para o rapaz. O rapaz olhou para as calças de Tito e para o rosto de Tito. Sorriu. Tito desviou o olhar. Segura aí, disse o rapaz, e jogou a bicicleta para Tito. Quero um bolo de carimã, disse o rapaz para a mulher. Tito lembrou que aquele menino também tinha orelhas pequenas, e esse nariz de gavião, e os braços do rapaz de hoje possuíam o desenvolvimento muscular que os braços daquele menino prometiam. Tito se surpreendeu com suas próprias mãos no guidão da bicicleta. Era tão fácil se submeter. Deixou-a cair. Eu tenho o direito de me defender, pensou Tito. Pegou uma caneta de ponta muita fina, prêmio dado por um professor de filosofia do direito, por ser o melhor aluno da classe, e a enfiou, como se fosse um espeto ou um estilete, no pescoço do rapaz, em cima de uma veia que pulsava. Enquanto o sangue preto jorrava em cima do tabuleiro, o rapaz desabava com pedaços de bolo de carimã entredentes e com a caneta fincada no pescoço. Tito nada ouvia. O ônibus chegou. Ele entrou, pagou o cobrador, sentou em um banco, e sentiu imenso orgulho de si mesmo, pois usou pela primeira vez o conhecimento adquirido em sala de aula.
Tito corria perseguido pelas gargalhadas dos meninos enquanto prometia a si mesmo nunca mais correr de ninguém...
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
Imagem: Flowers (Andy Warhol, 1970)