1.
O ser humano é assim: cabeça, tronco e membros.
Quando entrei no colégio público, na quinta série, minha mãe me levou de ônibus, na primeira semana.
Para que eu não me perdesse, para que eu deixasse de ter medo.
Um negão nos batia se a gente não entregasse nossos picolés a ele. Subornei-o com um pastel de pizza. Sorri quando ele bateu amigavelmente na minha cabeça para agradecer. Os braços pretos e musculosos dele me lembravam os dos homens de minha família; eu nunca tive músculos como aqueles.
Para chegar ao colégio público, precisava subir uma ladeira. A ladeira tinha árvores. As árvores escondiam os pivetes. Às vezes, eles pulavam das árvores e nos pediam dinheiro, mas nunca tocaram em mim. Eu corria.
2.
Na sexta série, eu disputava uma menina judia com um branquelo. Quem veio me interpelar foi o puxa-saco pardo. Ele gosta dela e ela, dele, e você fica se metendo, o puxa-saco pardo me disse. Senti desprezo pelo puxa-saco pardo e simpatia pelo parmalat.
Seis meses sem aula durante aqueles quatro anos. Somados. Por causa das greves.
3.
Ela gostava de mim porque eu era inteligente. Ela gostava dele porque ele era bonito. Nós dois gostávamos dela porque ela era a mais fácil das meninas.
Eu era o cdf da sala. Eu era o palhaço da sala. Na sétima série, sabíamos que nosso professor de matemática era gay. E ríamos dele. Eu o arremedava, afinando a voz. Uma vez ele exigiu que eu saísse da sala. Eu recusei. Então eu me retiro, ele disse. Acabou a aula de revisão para a prova de trigonometria. Eu fechei a prova. Quase a turma toda se deu mal.
A professora de história sempre nos perguntava sobre o fim da União Soviética. Nossas respostas eram todas erradas. Ela nunca explicava o porquê.
4.
Uma menina pálida e ruiva chegava com brincos, colares e calças de marca. Tinha sotaque do interior e o apelido de Vaca Louca. Havia momentos em que era muito alegre, muito simpática. Em outros, ela chorava sem motivo. Saiu do colégio público, no meio do ano. A gente soube depois que era filha de uma empregada e roubava as coisas da filha da patroa.
Eu devia ter uns dez melhores amigos. Eu os deixava pescar da minha prova. A gente fugia para o shopping para jogar no fliperama. A gente tomou vassourada de um porteiro quando invadimos um prédio da rua do colégio público e uma senhora gorda, rosada e bem velha ficou gritando bate bate bate. A gente se ralava por debaixo da catraca dos ônibus.
O colégio público tinha uma sala dos surdos-mudos.
5.
Uma galega da oitava série disse no jogo da verdade que não gostava de ficar com moreninhos e olhou para mim, mesmo sem ter sido eu o autor da pergunta... Não é assim, não é que eu não goste... Eu desviei do seu olhar. Ela tinha cara de cavalo, seios empinados. Muito gostosa. Os lábios prometiam um memorável boquete. Assim começa o amor.
O parmalat desdenhou do cara negão e levou duas bordoadas. O parmalat girou sobre o próprio corpo. Foi como num desenho animado. Foi engraçado. O parmalat passou a andar cabisbaixo no colégio público. Não era mais bonito.
6.
Na oitava série, ela era estrábica. Bonita e nada de especial. Eu me apaixonava assim: uma por ano. Nossos olhares estrábicos se encontravam na sala. Eu não fazia o tipo dela, que não tinha autoestima. Antes do final do ano, ela foi embora para Minas.
A professora do Serviço de Orientação Educacional tinha ares de grã-fina. Falava pausadamente. Eu me sentia meio retardado quando conversava com ela.
Dedurei um primo mais velho que fumava maconha no colégio público.
Ela era negra, alta, magricela e ninguém prestava atenção nela. Anos depois, ela continuava negra, alta, magricela e não prestava atenção em mim. E continuava surda-muda.
7.
Minha judia tinha cabelos acastanhados. Teus beiços são grossos, ela me disse.
Alemanha, Itália e Japão eram os países do Eixo.
Meses sem professora de geografia. Meses sem professora de ciências. Mas na oitava série a gente teve aula de francês. Por causa da Copa.
Em uma reunião de pais e mestres havia no mural várias listas. Eu estava em duas: melhor rendimento e pior comportamento.
O que vocês, gente de Pernambués, vieram fazer aqui na Pituba?, perguntou uma vez a diretora do colégio público.
8.
A gente se gostava. Ela queria passar de ano e por isso queria ficar comigo. Eu ficaria com qualquer uma. Ela tinha problemas no coração. Veias roxas surgiam pelos braços finos e judaicos. Coloquei nela o apelido de Dona Roxa. Ela me escreveu numa carta que nunca iria me perdoar. E eu fingi que não ligava.
...E em 13 de Maio de 1888 a princesa Isabel assinou a Lei Áurea abolindo a escravatura no Brasil, disse a professora de história, uma mulher de cabelos tingidos de loiro que costumava nos aborrecer com relatos sobre suas compras no supermercado e no shopping. E então perguntei como se fosse um preto velho: Ôxe, ôxe, e a escravidão cabou mesmo, Sinhazinha? O pessoal se acabou na risada. Eu fui suspenso.
9.
Não saberia falar sobre o que significava ser uma judia. Talvez tivesse dificuldade em falar sobre nós mesmos, os negros. Ficava mais fácil quando se falava dos parmalats.
A bibliotecária não gostava de mim. Deixou de dar baixa num livro que devolvi. Como não podia devolver o que já estava devolvido eu usava os nomes dos meus amigos para pegar os livros. Meu ódio por ela não impediu que eu batesse punheta em sua intenção.
Meus primeiros beijos foram os abraços que as meninas do colégio público davam na gente. Se você foi tão feio na adolescência quanto eu fui não verá pieguice na frase anterior.
Não se bate em alguém só porque a pessoa é um surdo-mudo. Não se bate em alguém porque outros batem na gente. Até hoje... não consigo, por mais que eu me esforce... lembrar quem me disse.
10.
Eu era o cdf da sala. Eu era o palhaço da sala. Na sala de ciências a gente se sentava em círculo. A professora me colocava no centro do círculo para que eu não atrapalhasse a aula com minhas conversinhas paralelas, ela me disse. Eu a xinguei. Muito baixo.
As regiões do Brasil são Sudeste, Sul, Centro-Oeste, Norte e Nordeste, onde fica o Estado da Bahia, cuja capital é Salvador.
A gente descobriu uma mosca gigante, quase como se fosse uma abelha, dentro do meu picolé de amendoim. A gente reclamou com a diretora. A prova em mãos. E daí, você quer que eu entre em cada picolé da cantina para verificar se tem mosca?
11.
Meu pai me perguntou sobre o boletim. O colégio público não entregava boletim. Anotava todas as minhas notas no meu caderno. A menor era 9,8. Meu pai disse que eu poderia estar mentindo. Foi a primeira vez que odiei meu pai. Melhor dizendo, foi quando descobri que eu o odiava.
A gente se abraçava muito, era só amizade. Ela tinha buço. Ela fumava. Meio roqueira, ou pelo menos eu achava que ela tinha jeito. Ela queria ser diplomata. Anos depois, ela casou com um cara mais velho, teve um filho e foi morar em Ibotirama.
Sempre gostei de usar farda.
12.
Eu era o cdf da sala. Eu era o palhaço da sala. Mas sempre me dei mal em educação artística. Um amigo que filava todas as aulas deixou comigo um trabalho, uma flor dupla face feita de papel crepom amarelo e vermelho. Eu deveria entregar o trabalho para a professora, e o fiz como se fosse meu. Ele perdeu de ano por causa das faltas.
Machado nasceu romântico e morreu realista.
Não me olhe de cara feia, me disse a diretora, uma vez em que estávamos sozinhos em sua sala. Eu estava de castigo por ser novamente grosseiro com a professora de história. Não me olhe de cara feia, se eu tivesse medo de cara feia, eu não chupava cabeça de pica. E riu, mostrando-me a língua. Meu pau ficou duro.
13.
Ela era judia por causa do nome, eu achava. E também tinha aquele nariz. Assim como o meu nariz largo e achatado informava a todos de onde eu vinha e quem eu era. Um nariz de calçola, me diziam. Nunca falei sobre isso com ela. Só mesmo agora eu acho que ela era judia e nem saberia dizer se algum dia isso teve importância para mim ou por qual motivo eu escrevo isso agora. Talvez eu esteja apenas inventando uma justificativa, implausível e inconsistente, para o que escolhi fazer da minha vida depois que deixei o colégio público. Talvez eu apenas esteja inventando uma estória, para um certo tipo de gente que gosta de se emocionar com essas coisas. Como se eu conhecesse esse certo tipo de gente...
Talvez eu continue sendo um sujeito leviano, como dizia minha professora de história.
Depois da oitava série eu iria trocar de colégio público. No dia do resultado final fazia frio. A gente se abraçou no portão. Braços finos que buscavam torsos esqueléticos. Por cinco, dez segundos...
Eu nunca tive coragem de beijar Dona Roxa.
14.
A gente assistia a uma projeção sobre a Segunda Guerra Mundial na biblioteca. Hitler esbravejava e Stálin sorria. Eu estava de pé ao fundo e me dei conta que a galega estava logo à minha frente. O perfume dela era adocicado. Puxei-a pelo quadril na escuridão. Ela começou a roçar a bunda por cima da minha calça. Eu mordiscava, beijava e lambia o cangote. Ela virou o rosto e meteu a língua na minha boca, enquanto muita gente morria na parede. Durou dois, três segundos. Prédios desabavam e incêndios comiam florestas enquanto meu pau latejava. A galega ficou roçando a bunda em mim durante todo o resto da projeção, enquanto eu passava a mão na parte da frente da calça dela. Tentei abrir o zíper, mas ela me interditou, com um pequeno beliscão, o acesso à xoxota. A palavra Normandia piscava diante de nós. A galega sussurrou que assim estava gostoso e eu melei minha cueca pela primeira vez. As imagens da parede exibiam, por fim, um campo de concentração e, de repente, alguém começou a soluçar. A professora de história acendeu a luz: era a Dona Roxa.
15.
E desde então toda vez que vejo corpos empilhados eu percebo um cheiro doce.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
Imagem: Retrato de duas mulheres, Diego Rivera.
Kkkkkk Muito bom! Ri aqui com "Quase a turma toda se deu mal" (esperava até um "Quase a turma toda se fudeu") e "foi morar em Ibotirama"!