O zagueiro rebateu de qualquer jeito. A bola subiu uns dez metros e desceu veloz. Sebastian a acolheu sem dificuldade no pé direito.
Deu um tapa na bola e cortou o primeiro marcador. Nem parecia tão gordo. Fintou mais um e chutou forte pouco depois de passar do meio de campo.
A bola percorreu um trajeto sinuoso, fez que ia para um lado e, sem resvalar em ninguém, rumou para o outro. O goleiro, garoto esquelético de uns quinze anos, pulou para trás e esticou o quanto pôde o braço direito. A bola bateu na mão aberta e saiu pela linha de fundo.
Foi um lance bonito.
“Esse menino pega muito. Parece com você, Binho. Quando tinha a idade dele”, disse Hilton.
“Foi uma puta defesa mesmo”, respondi.
“Você poderia ter sido um goleiro foda. Um novo Dida. Eu lembro que você agarrava muito.”
“Pois é.”
Começava a anoitecer. O baba só iria durar mais uns quinze minutos.
O goleiro se levantou. Sorria orgulhoso. Adversários e companheiros o cumprimentavam.
Somente Sebastian não expressou reação. Sempre foi assim, desde quando éramos pivetes.
Continuou parado, com as duas mãos sobre os quadris largos, em frente ao trecho do campo que tem um relevo semelhante a um leito de rio seco. Foi ali mesmo que estrepei o meu joelho esquerdo alguns anos antes e perdi as chances de fazer peneiras no Bahia e no Vitória. Nunca mais fui o mesmo e tive que arrumar outra coisa para fazer da vida.
“Por que ele não deu certo no Grêmio?”
“Sebastian?”
“Ele foi pra lá pivete, né?”
“Não ficou muito tempo. Não sei bem o que aconteceu. Ele não se deu bem com o povo do sul, teve que voltar. E você sabe como é Sebastian. Metido que só a porra.”
“Me disseram que ele jogou com Ronaldinho…”
Sebastian se profissionalizou no interior da Bahia. Virou, rapidamente, um andarilho da bola. Rodou pelo Paraguai, Bolívia e parou no México, onde jogou durante dois anos. Foi lá que os joelhos dele estragaram. Foi lá também que ganhou mais dinheiro na vida.
Quando voltou, dizia que a coisa que mais gostava de fazer no México era andar à noite no deserto. Nunca explicou como machucou os joelhos, só dizia que não foi jogando bola.
Vai ver que tropeçou no escuro e caiu em cima de um cacto. Sebastian sempre foi um bicho esquisito.
Ao voltar do México, comprou uma casa em Pernambués.
Antes de encerrar a carreira jogou no Galícia, o time do pai, um espanhol arrogante.
Duvido que tenha feito gol mais bonito do que aquele na velha Fonte Nova.
Eu estava na arquibancada.
Sebastian driblou três meio-campistas do Bahia, colocou a bola por entre as pernas do zagueiro central e estapeou a bola por cima do goleiro, que ficou estático e humilhado. Era o primeiro gol da partida e Sebastian apenas voltou andando para o meio de campo, como se não fosse nada.
O Bahia ganhou de cinco a um.
Jogou mais um tempo e largou de vez o futebol. Virou cobrador de ônibus.
O chefe foi paciente quando Sebastian vacilou com a gente. Deu a ele um tempo para consertar as coisas. Éramos todos amigos de infância. A gente só derruba quando não tem mais jeito.
Sebastian nem se deu ao trabalho de explicar seu erro. Nunca pedia desculpas, nunca dava um sorriso, nunca agradecia um favor recebido. Era igual ao pai dele. Para esse tipo de gente, tudo que acontece de bom ainda é pouco.
Sumiu de Pernambués por vários dias.
Reapareceu ontem dizendo que teria o dinheiro em pouco tempo.
“Como ele pode ser tão burro? Onde já se viu levar a parada no ônibus?”
Hilton abriu a pochete e pegou uma garrafinha de cachaça. Sempre tomava uma dose antes de fazer o serviço. Dava coragem, ele já me confessou.
Deixamos o campo. Passamos no barraco para pegar as pistolas e ficamos na esquina.
Passava da meia-noite e ainda esperávamos por ele. Quando nos viu, não demonstrou surpresa. Não adiantaria muito correr. Éramos, ele e eu, dois lascados do joelho. Só que Hilton continuava rápido.
Abriu a porta de casa em silêncio e entramos logo atrás sem esperar convite. Se jogou por cima do sofá e nos encarou, desafiante. Continuamos de pé.
“Pensei que ele tivesse me dado um tempo.”
“Você já teve tempo pra caralho, velho”, disse Hilton.
“Eu só preciso de mais uns dois dias…”
“Por que você não deu certo no Grêmio?”, perguntei.
Sebastian quase sorriu.
“Não sei… Não me dei bem com as pessoas de lá, você sabe como é… A verdade é que nunca gostei de treinar, concentrar, não poder comer o que a gente gosta, só insisti porque não sabia fazer outra coisa.”
“Como era jogar com Ronaldinho Gaúcho?”, perguntou Hilton.
“Nunca joguei com ele.”
“Você ia fazer um golaço hoje”, eu disse.
“Você viu, né? Aquele pivete pega bem. Lembrou você. Você seria um goleiro foda, Binho, você poderia ter tentado…”
“Não foi escolha minha. Meu joelho nunca sarou de verdade.”
“Os meus sempre doem. Entrei na faca, fiz fisioterapia, não adiantou. Nem sei porque ainda invento de pegar o baba.”
Sebastian se endireitou no sofá. Olhou sério para nós dois.
Hilton fechou a porta com sua arma em punho.
“Você tinha mais vontade de ser profissional do que eu, Binho.”
Mostrei a minha pistola e sorri.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
A foto que ilustra o conto foi registrada pela minha amiga Paula Alves, na praia da Gamboa, em Salvador.
"Éramos todos amigos de infância. A gente só derruba quando não tem mais jeito". Essa frase toda já vale mais que um conto inteiro. Muito bom!