Quando Joaquim voltou para o apartamento, a filha brincava com bonecas, bichos de pelúcia, um tubo de cola, tocos de lápis de cor e um estojo de madeira na única cama do quarto-e-sala.
O dono do sebo fingiu não me reconhecer, ele pensou ao sentar na poltrona. Avaliou, apressadamente, os livros que Joaquim tinha levado e ofereceu um valor que só daria para pagar a conta de luz.
Ainda tinha comida para mais uma semana, ou até mais… se ele comesse menos.
Esguia e na ponta dos pés, Joaninha entrou na cozinha. Só de calcinha. A camisa e a calça da escola estavam amontoadas no corredor.
Já disse, eu não quero você aí, saia da cozinha, disse Joaquim.
Depois do primeiro gole, a menina respondeu. Só tô bebendo água... Não posso?
Não interessa, peça a mim... Não me responda! Cinco anos e já com essa ousadia toda.
Joaninha fez um muxoxo e correu de volta para o quarto.
Joaquim a seguiu até a porta. Que muxoxo é esse?
Nada. Tô brincando, respondeu Joaninha. Ela fechou a porta.
Na cozinha, ele colocou água e pó na cafeteira italiana. Seria o quinto café do dia.
Joaquim se sentia irritado desde a madrugada quando flagrou uma barata escapulindo do lixo da cozinha. Aquela presença imprevista fez com que ele passasse a perceber cada filigrana de sujeira do apartamento.
Antes de ir ao sebo, recebeu a negativa do empréstimo bancário, suplicou sem sucesso aos amigos, sentou-se no chão e começou a escolher os livros. Juntando as lombadas ele formava frases, frases que só pertenciam a ele e eram tão bonitas as capas dos livros que ele comprava. Sentia vontade de beijá-las.
O problema sempre residiu nos números: esquivos, trapaceiros, adversários. Um erro de cálculo e ele se via obrigado a se desfazer de tudo o que mais amava.
Joaninha continuava a brincar no quarto, vez ou outra, rompia o silêncio e parecia emitir ordens, com sua voz rouca, a uma de suas bonecas ou um dos bichos de pelúcia.
Da sala, Joaquim tentou adivinhar o que a filha dizia. Não conseguiu. Foi escutar encostado à porta. Entendeu algumas frases.
Vai menina, vai, você consegue, vai menina, vai menina.
Antes que voltasse à poltrona, uma nova onda de irritabilidade tomou conta de Joaquim. Via sua estupidez personificada nos buracos da estante, a ausência dos livros que jamais leria. As letras das lombadas sobreviventes formavam as frases de pilhéria que ele ouvia quando era criança.
Entrou no quarto e arrancou o estojo de Joaninha.
Que porcaria é essa aqui?
Me dê! É meu! É meu!
Que merda você anda fazendo?
Não gosto de você. Eu quero minha mãe!
Joaquim abriu o estojo e foi com horror que descobriu que uma barata nadava em uma piscina de cola branca.
Ele olhou para as bonecas e bichos de pelúcia e distinguiu no olhar de cada um o escárnio tão conhecido.
Sua porca! Um tapa acertou o rosto da filha. Joaninha conseguiu se esquivar do segundo golpe. Joaquim arremessou o estojo contra a parede.
Joaquim correu atrás de Joaninha, que dava pulos de gato em direção à cozinha. Em sua fuga, a menina bateu de quina no fogão e a cafeteira emborcou derramando-lhe o líquido preto que desceu feito lava sobre o pequeno peito.
Joaninha debatia-se afônica no chão e Joaquim ficou paralisado junto à entrada da cozinha.
Joaquim deixou atordoado a saleta da assistente social em direção ao setor de queimados do hospital.
Joaninha quando viu o pai fez aquele bico tão dela e tão lindo e tão doce. Nunca esteve tão parecida com a mãe.
Joaquim fez um cafuné desajeitado na cabeça da filha. Queria mesmo que o choro chegasse até ele. Só conseguia pensar em quantos e quais livros seriam vendidos na próxima vez que fosse ao sebo.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
A fotografia é de Agnes Cajaiba.