Não há um cadáver sobre o qual chorar.
Com policiais militares, traficantes, gente correndo desesperada em meio a um tiroteio num buraco qualquer do Nordeste de Amaralina, arranjava-se uma bala perdida e o problema estaria resolvido.
Ao menos poderíamos ter em cena um imbecil de classe média a dirigir bêbado pela orla; quem sabe um garoto de programa acossado pelo nojo de si mesmo, com uma faca de serra nas mãos em um hotel no Dois de Julho; um corno ultrajado, uma namorada ciumenta, uma briga entre vizinhos a ser apartada.
Seria reconfortante se o corpo de Carlos Franzino fosse encontrado num dos cenários rotineiros da chamada guerra urbana que arrasa Salvador nos últimos anos.
Abriríamos a boca para lamentar outro homicídio de um jovem preto inocente; para camuflar bocejos, citaríamos expressões como apartheid social, limpeza étnica, escalada da violência, decadência soteropolitana; refugiar-nos-íamos na sabedoria do candomblé, estenderíamos as mãos na direção do pouco de catolicismo que nos resta, com ditos vagos sobre Deus; e vilipendiaríamos nossa cidade cruel e caricata.
Excelente seria vê-lo mártir de uma conspiração de empresários e políticos para transformar o último pedaço de Mata Atlântica da cidade em um condomínio de apartamentos de cozinhas e quartos de empregada estreitos, assolado por barbeiros nas imediações da Paralela.
Reconfortante seria vê-lo esmagado em Mussurunga, embaixo das rodas de um ônibus, dirigido por um motorista exaurido pelas horas insones.
Porém, a estória aqui não é um comentário a respeito de um homem premido entre o desenrolar opressivo da História e a fatalidade das Estatísticas. Temos apenas um drama privado, comezinho, em tom menor.
Um drama sem corpo nunca acaba.
Com um corpo, poderíamos fazer discursos, chorar escandalosamente no cemitério, homenageá-lo com suas frases prediletas e suas histórias mais famosas. Seria bonito ver o caixão baixar à terra enquanto cantamos as músicas da Timbalada que embalaram nossa adolescência. Quando as coisas chegam ao fim, é possível recomeçar.
Sem corpo não há fim nem recomeço, sobra uma esperança que diminui a cada dia até se tornar uma angústia opressiva.
Que ele não tenha sofrido, rezamos em silêncio.
Em uma quarta-feira, Carlos Franzino deveria me encontrar no Cravinho, por volta das sete horas da noite. Dividiríamos umas moelas com farofa e umas doses de jatobá. Talvez ele me contasse alguma anedota nova, a última conquista, a descoberta de uma roda de samba. Mais uma vez, recordaríamos velhas histórias, nas quais atos covardes se metamorfoseiam em proezas, a exemplo da vez em que tomamos uma carreira da galera do fim de linha da Mata Escura.
Divagaríamos sobre uma Salvador construída pela nossa memória.
Ele lembraria que me bateu no rosto uma vez e eu responderia que um homem rápido em um dia torna-se lento no outro, e que certas ofensas nunca são esquecidas.
Revelaria a ele que voltei a escrever e receberia o silêncio como resposta. Dissecaríamos a difícil situação conjugal de algum outro amigo. A mim caberia ainda louvar a sorte de ter conquistado minha mulher; lamentaria ainda estar casado com ela.
Nada disso ocorreu porque eu tinha outros planos.
Carlos Franzino comeu uma moqueca de fato, logo no começo da manhã de domingo, na casa do pai no Retiro. Conversaram sobre coisas bestas, algum perrengue de menor monta no trabalho dele; um parceiro ausente na mesa de buraco; o filho do dono do mercadinho a transitar numa moto invocada e histérica.
No fim da manhã, foi visto no baba disputado pouco antes do meio-dia no Centro Social Urbano de Pernambués. Fez algumas piadas, marcou dois gols, xingou a mãe de um amigo, quis sair na mão e, depois arrependido, pagou duas cervejas.
Um antigo caso, Sandra, disse-me que ele inventou de almoçar pelos lados do Dique, e logo depois, acompanharam um modorrento jogo do campeonato baiano. Dormiram na casa dela, na avenida Joana Angélica; foi muito carinhoso, solícito, vibrante, e, por fim, nada mais que distraído. Saiu de lá direto ao Porto da Barra, onde foi visto nadando, segundo dois vendedores de água de coco – a única informação útil que a polícia nos trouxe. Trabalhou na segunda-feira na concessionária da Avenida Vasco da Gama; nada digno de menção foi relatado pelos colegas ou pelo chefe. Foi visto entrando em casa no Engenho Velho de Brotas, por volta das sete da noite. Cumprimentou educadamente os vizinhos. Foi visto na primeira missa na Igreja do Bonfim, na terça-feira pela manhã. Trabalhou na concessionária da Vasco da Gama; nada digno de menção foi relatado pelos colegas ou pelo chefe.
Dormiu na casa de Marina, o caso mais recente; foi muito carinhoso, solícito, vibrante e, por fim, nada mais que apressado. De manhã foi visto na Feira de São Joaquim. Comprou algumas frutas, comeu mocotó. Trabalhou na quarta-feira na concessionária da Vasco da Gama; nada digno de menção foi relatado pelos colegas ou pelo chefe. Despediu-se pouco depois do anoitecer.
Há quem veja um vulgar roteiro de despedida; os mais argutos constatam apenas a marca insossa da rotina.
Andei com Carlos em muitas bocadas de Salvador. Apostamos, às vezes, no Terreiro de Jesus, quem beijaria mais mulheres numa noite; eu perdia invariavelmente. Sabíamos que há lugares na cidade em que a escuridão domina mesmo sob o sol de janeiro; igrejas abandonadas onde o diabo dormita; encruzilhadas em que cabeças de bode apontam o caminho seguro; bordéis em que meninos e meninas são apreciados apenas por uma noite. Sabíamos que uma criança nessa cidade é vista andando tranquilamente na escalavrada rua direta de São Caetano, por volta das três horas da tarde, tropeça e some aos olhos de todos no segundo seguinte, e ninguém parece fazer grande caso.
Esses “mistérios” fazem a fama de Salvador. Gostamos de repeti-los quando estamos entediados nas cidades do interior.
Após as seis horas daquela quarta-feira, dizem que Carlos Franzino esteve numa reunião evangélica em Paripe, num terreiro de Itapuã, numa cerimônia de arrasta e quebra copos na Barra, escornado num puteiro no Iapi. De seu paradeiro, restam apenas nomes de bairro.
Ele nunca apareceu no Cravinho naquela noite de quarta-feira. A polícia nunca checou se eu apareci no Cravinho. Todo meu treinamento para o depoimento se revelou desnecessário.
A casa de Carlos Franzino permanece fechada. O pai, resignado, continua a jogar seu baralho domingueiro. Marina casou. Eu cheguei a me deitar com Sandra.
Existe uma Salvador habitada somente pelos desaparecidos. Meu amigo percorre suas ruas em busca de uma entrada que o faça retornar para nosso lado. Não há saída para os mortos. Ele grita meu nome.
A cicatriz localizada acima da minha sobrancelha esquerda é uma lembrança gravada no meu rosto. Ela impede que eu me esqueça da nossa amizade.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
De acordo com o site Salvador Antiga, a fotografia que ilustra o conto “foi feita pelo Sr. Mercier, fotógrafo da Campagne du navire école Duguay-Trouin 1902 - 1903, um navio-escola francês, que aportou na Bahia no final de 1902 e fez vários registros fotográficos.”
Lembrei do final da Valsa nº 6 do Nelson Rodrigues: "Porque quem fica chora... E o defunto?
O defunto nem sabe que morreu!"