Recebeu o apelido de Elefantião.
Era retinto e, quando criança, acima do peso. Dotado de uma voz de barítono, queria ser cantor de música popular.
A avó, professora de matemática de um colégio tradicional do centro de Salvador, criava Elefantião de maneira rigorosa. Liberdade faz mal para meninos pretos, ela dizia a quem quisesse ouvir e sem qualquer resquício de vergonha.
Era um menino obediente. Elefantião desconfiava de si mesmo e pensava que a avó sabia melhor do que ninguém como ele deveria se comportar.
Desde cedo demonstrou uma tendência à autocomiseração. Contribuiu para esse estado de coisas o fato de ele ter sido um alvo preferencial do que se convenciona chamar na nossa época de bullying.
As chacotas perseguiam Elefantião no melhor colégio particular de Pernambués. Batiam em sua pança e pulavam em suas costas na hora do recreio. Nas aulas de educação física, nunca era escolhido para o baba.
Houve momentos em que Elefantião reagia às pilhérias e essas reações eram tremendas: teve a vez em que socou o rosto e pisou no peito de um colega baixinho, que tinha lhe dado um beliscão na bunda.
Na festa do folclore, fantasiado de lobisomem, pediu em namoro Iara, a mais bonita menina da escola. Ele nem gostava mesmo dela, só queria provar que não tinha medo de mulher; comovida com a audácia daquele irreal pretendente, ela recusou a proposta com delicadeza: Elefantião, você brilha!
Com o tempo, a vigilância excessiva da avó fez o menino desenvolver, nas longas horas que passava deitado no quarto, um simulacro de filosofia própria, com arremedos religiosos.
A autoindulgência e a humildade servil eram dogmas do Elefantianismo.
Eis o cerne da coisa: recitava aforismos sobre a falta da vaidade, pregava a necessidade de se ridicularizar diante dos outros, reconhecia a superioridade dos machos alfas – todos seus amigos acreditavam formar uma alcateia de machos alfas.
A avó desconhecia os ensinamentos do Elefantianismo.
Os amigos recebiam com graça quando Elefantião os benzia no mar, nas poucas vezes em que ele recebia permissão para ir à praia. No fundo, eles admiravam a capacidade que Elefantião demonstrava para a autoironia.
Era o profeta da derrota.
Elefantião cresceu, perdeu barriga, tornou-se um homem bonito. Aquele tipo de preto que nossa sociedade, mesmo a contragosto e com condescendência, costuma admitir como belo: musculoso, alto, cabelo raspado e sorriso luminoso de dentes alvos e regulares.
Vestia batas e calças brancas. Andava de sandália de couro. Era gentil. Dificilmente alterava o tom de voz.
Sem que a avó soubesse, passou a se apresentar na rádio comunitária do bairro, no horário vespertino, interpretando músicas de Tim Maia, Batatinha, Caetano, Dolores Duran, Tom Jobim, Gordurinha, Gil, João Gilberto, Paulinho da Viola, Pixinguinha, Vinicius de Moraes, Baden Powell, Moraes Moreira, Lupicínio Rodrigues, Adoniran Barbosa, Jorge Ben Jor e Roberto Carlos, seu predileto. Por vezes emendava Chico Buarque e Milton Nascimento, com os quais antipatizava. Desdenhava os sucessos do axé e só concedia exceção a Luiz Caldas. Nada conhecia do cancioneiro internacional.
Imprimia às interpretações uma dicção alegre e cristalina, dotada de calor e irreverência.
As mulheres começaram a aceitar convites para um sorvete, um pastel de queijo, um acarajé sem pimenta, na praça principal de Pernambués.
A avó flagrou as cantorias ao sintonizar por engano a rádio comunitária. Exasperou-se como uma traída. Proibiu-as e abortou as primeiras apresentações nos barzinhos do bairro, que já estavam agendadas. Vendeu o violão, comprado em sigilo.
Trancou Elefantião em casa, mesmo que ele já fosse um homem feito, maior de idade e vacinado.
Elefantião nada disse. Nada disse durante seis meses. Comia muito pouco. Definhava.
Em uma tarde chuvosa, a avó sofreu um ataque cardíaco. Elefantião acudiu a velha, mas deixou de ligar para a Samu.
Observou em silêncio a velha estapeando o nada até morrer.
Elefantião deixou a casa apenas com a roupa do corpo.
Encontraram o corpo da avó no chão da cozinha uma semana depois.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
A foto foi registrada por mim durante uma tarde solar em um parque de Buenos Aires, em novembro de 2023.
A primeira versão do conto fez parte da minha coletânea Caçada Russa & outros relatos.
No próximo sábado, enviarei um conto inédito e exclusivo para os assinantes pagos.
Feliz Natal e Feliz 2025 a todos :)