Chegou à esquina com as cédulas amarfanhadas na mão esquerda. A direita segurava o livro que há semanas tentava ler sem sucesso. A luminosidade intensa daquela manhã ardia os olhos e, mesmo assim, estava frio. A menina não poderia continuar a ir à escola sem o uniforme completo, ele pensou; uma nova camisa era mais do que necessária e já tinha recebido dois avisos da ex-mulher. Estava envergonhado.
A velha estava atrasada. Não quis fazer um abatimento.
Ele amassava ainda mais as três cédulas de dez reais, cédulas que fariam falta àquela altura do mês, as coisas não estavam indo bem e poderiam se complicar... Abriu o livro. As frases repletas de torneios, mas estranha e prodigiosamente precisas, causavam-lhe uma inveja que corroía a concentração. A cada frase uma estocada, e ele interrompia a leitura para reiterar a própria incapacidade. Se tivesse coragem... Rendia-se a uma imagem convencional: a do mergulho no abismo. Talento era apenas isso, ímpeto para o salto.
Notou que a camisa azul exibia pequenos respingos amarelados e endurecidos, que brilhavam na intensa claridade daquela manhã gélida. A calça exibia rasgos na bainha. Estou mais magro, pensou. São tempos difíceis, a situação aperta cada vez mais... Olhou para a capa feia do livro, mais adequada a um romance policial, um homem de costas a saltar... a saltar no vazio... e então se lembrou do amigo que não via há muito tempo, não via quase ninguém há muito tempo, inclusive a filha, mas já fez aniversário a última vez que encontrou aquele amigo que andava tão fascinado, tão obcecado por conspirações, atos de sabotagens, agentes duplos, a dinâmica interna dos grupos armados e suas relações interpessoais, o aparelho repressivo da ditadura, as siglas das organizações de esquerda, os métodos de tortura e de desova, a lei da anistia, a redemocratização, o sofrimento dos familiares com o nunca reaparecer...
Se fosse naquela época, eu não poderia estar parado na rua com um livro deste autor, seria um ato subversivo, pensou. Riu.
“Meu velho, seu apartamento daria um ótimo aparelho. Sério mesmo, é bem localizado, com uma fachada discreta, residencial... Bastava apenas que se apresentasse um casal, uma mulher de olhos cálidos e um homem de óculos…”
Já não fazia parte de um casal. Elas já estavam tão distantes no espaço e no tempo. Nem sabia o quanto a filha havia crescido, se a mulher arranjou outro homem; a relação com as duas se restringia a depósitos bancários cada vez mais esparsos. A menina já teria menstruado? Nunca mais ouviu aquela vozinha rouca. Ouviu sim, no dia anterior, a voz da mãe exigindo a compra da camisa, pelo telefone.
Ele tentou negociar com a velha que vendia as peças em um carro utilitário estacionado em frente à escola. Apareceu depois do horário de entrada dos estudantes. Assim, escapou de encontrar a filha.
Já quase não tenho lucro, meu rapaz, é trinta reais mesmo. Menos do que isso eu não posso fazer.
“É claro que o treinamento de guerrilha era duro. Não era para qualquer um. Olha, eu fui lá nos campos de Cuba e me informaram…”
“Como assim campos? Você tá ficando brôco mesmo. Há motivos melhores para estar em Cuba: Malecón, charutos, carros antigos, mojitos, shows de salsa e cubanas.”
A velha não tinha uma camisa do tamanho da filha. Levo para você amanhã, não precisa vir aqui, a gente se encontra naquela esquina... Esqueceu de combinar com a mãe a forma de entregar a camisa. Descartou pedir à velha para entregar à mãe ou à menina; os velhos se confundem. Mandaria pelo correio? Seria ridículo e não tinha dinheiro para isso. Teria de ligar e ouvir aquela voz autoritária, roufenha. Teria de ceder.
Da última vez, o amigo saiu-se com esta:
“Qual é o ponto?”
“O quê?”
“O ponto, ora. Onde a gente se encontra. Seja breve.”
“Você está doido demais! Naquela esquina tem um café…”
Parado com este livro. Desse autor. Estaria correndo perigo? Começou a sentir uma inquietação... não, daqui a pouco fico doido igual a ele, pensou.
A esquina estava deserta. Não passava carro. Seria cedo demais? Não convém esperar mais do que cinco minutos depois do horário combinado, pensou.
A velha finalmente apareceu. Aproximava-se lentamente. Usava óculos escuros. Ele acenou com o livro. Ela tirou os óculos.
Quando se deu conta já tinha tomado um soco na nuca.
Dois homens de ternos pretos o agarraram pelos braços. O livro caiu no chão.
“Não grite. Não reaja.”
Um Opala preto freou bruscamente à frente dele. Abriram a porta de trás e o jogaram para dentro.
Os dois homens emanavam um ranço de suor.
“É, meu rapaz, seu amigo não mentiu”, disse o que se sentou ao lado esquerdo.
“Ele não é de mentir”, respondeu.
“É só apertar um pouquinho no lugar certo que eles abrem tudo. Não tem erro”, disse o que se sentou ao lado direito.
Ele arremessou as cédulas amarfanhadas pela janela do carro.
A velha se aproximou do carro. Tamborilou no capô e, lentamente, agachou junto ao livro. Retomou os passos com o livro em mãos e começou a folheá-lo. Pisou nas cédulas.
O Opala arrancou pela avenida deserta.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
A fotografia é de Agnes Cajaíba :)
Uma versão anterior do conto fez parte da minha primeira coletânea: Caçada Russa. O livro foi publicado em 2016.