Tiberius perseguia os ratos que saíam da vala de nossa rua. Tinha a qualidade dos camaleões de passos vagarosos da Praça da Piedade que eu acompanhava espantado durante minha infância: o corpo de pelos castanhos e pele citrina se camuflava em meio aos montes de areia, casas de tijolos à mostra, sacos de lixo de diversas cores...
Os ratos passavam velozes, Tiberius surgia do nada e agarrava um pelo rabo. Cortava uma patinha dianteira, o rato guinchava, furava um olho, o rato guinchava, abria a barriga... Deixava a vítima no meio da rua sem asfalto, voltava indolente para casa, lambendo o sangue que restava nas unhas compridas e limpando a faquinha no short marrom.
Havia um esporte secundário: a decapitação de pombos. Tiberius somente se dedicava a brincar de malabarismo com as cabeças das aves quando os ratos se obrigavam a um preventivo toque de recolher.
Porém, a cautela durava poucos dias e as baixas entre os roedores eram registradas novamente. Houve um morcego, uma vez: encontrei-o ante o batente de nossa porta; ventre aberto e asas estendidas sobre um crucifixo. O sangue ressequido do morcego se misturou ao sangue pintado da imagem de Cristo. Debalde procurei descobrir onde ele arranjou aquele artefato prateado. Decidi guardar o crucifixo.
Tiberius sumiu no domingo. Estamos na quarta-feira. Rotina para quem tem um gato, ou uma criança como aquela. Não fosse o pressentimento de minha mulher de que nunca mais voltaria a vê-lo. Tinha mania de história antiga: chamava Salvador de Roma Negra, recitava sentenças em um latim estranho e todo próprio, obrigava-me a empreender noturnas matanças de carneiros no nosso quintal em cultos aos deuses gregos, desejava obter uma segunda criança para nomeá-la Alexandre e arregimentava efebos como amantes e discípulos. Nosso relacionamento começou por causa do meu nome de imperador-filósofo.
Sou auxiliar de contabilidade.
Ela se considerava uma pessoa colhida pela fortuna, apesar de todos os nossos reveses, e em qualquer viela desfilava com ares imperiais. Mal percebia que seu andar de postura empertigada era um andar ridículo para uma cidade cujas calçadas eram feitas para a curvatura de escravos. Os motorizados têm a predileção dos deuses, eu a avisava, quando disputávamos espaço com os carros nas ruas do bairro.
Porém, minha mulher distorcia a realidade para encaixá-la em seus delírios de grandeza. Estamos vivendo os últimos dias da Roma Negra, meu bem... Os sussurros dela guiavam-me pela trilha de mel no corpo do efebo. Ele se arrepiava. Tiberius nos observava com desdém pelo vão da porta do quarto. A minha língua captava o amargor... Estamos vivendo os últimos dias da Roma Negra, meu bem... Ela bailava nua para nosso deleite... E pela manhã, antes do desjejum, ela esfregava as planilhas entre as pernas, e quando eu as tocava no escritório, o perfume e o calor de minha mulher irradiavam por toda a mesa e impossibilitava a execução de uma simples operação aritmética.
Conheci dias maravilhosos.
Nem tão maravilhosos assim, em verdade: Tiberius se saciava com salmão, bacalhau, robalos; os caninos proeminentes atacavam as postas inteiras recém-saídas do forno. Não sei como distinguia o gosto, mas bebia apenas o leite mais caro do supermercado. No leito noturno, quando tentava me aproximar de minha mulher, encontrava-o no regaço dela, como se guardasse o velocino de ouro. Recebia os carinhos destinados a mim, por direito, pois mal se separava dela quando ambos estavam acordados. Somente saía à rua para cometer seus crimes já que ela mesmo o educava. De sua boca eu ouvia sons guturais que apenas minha mulher compreendia. Urinava em meus papéis e deixava surpresas sólidas em meus sapatos.
Com cabelos revoltos de Medusa, minha mulher repete que algo de muito ruim aconteceu a Tiberius. Ôxe, daqui a pouco ele volta, não é a primeira vez, eu afirmo para disfarçar. Não, não, eu sei, eu previ... Com certeza, alguma messalina envenenou meu menino. Duvido que alguém da vizinhança fizesse algum mal a qualquer ser vivo. Mesmo a alguém tão desprezível como Tiberius, eu afirmo.
Um dia ainda danço nua para o senhor, apenas para irritar sua mulher, assim ela costumava provocar os que desejavam provar do seu sumo. Evitávamos conflitos ruinosos à nossa pax. Nada de orgia com membros da vizinhança. Nossa lei. Minha única lei.
Talvez seja um castigo dos orixás, digo. Pelo nosso abandono. Pelo nosso desrespeito. Pela nossa traição. Ela muxoxa impaciente e vira o rosto para a janela. A noite se aproxima.
Horário de caça de Tiberius. Nenhum guincho.
Os olhos lacrimejam de ódio. O alvo sou eu, o culpado sou eu. Quem mais haveria de ser? Ela me deita um olhar com tamanho desprezo, quase me desespero e fico perto de confessar a verdade. Eu previ, eu previ... Somnia, terrores magicos, miracula... Ela começa a recitar... A verdade não seria libertadora, não ao menos no meu caso: a ausência de Tiberius era minha perdição.
Ele foi um presente meu da época da paixão. Meu holocausto inverso a Afrodite; a ausência dele determina o fim do encantamento que prende minha mulher junto a mim. Sem ela e sem a maldita criança, resta usar a faquinha afiada para abrir rios vermelhos em meu pulso.
E se a ampulheta escorre célere em direção à verdade, de que maneira relatarei a ela o fim do pequeno tirano?
Naquele entardecer de domingo minha mulher ressonava ao lado de mais um efebo. Os romanos viviam assim, o que hei de fazer? Saí da cama para fumar um cigarro.
Fiquei sobre o muro a olhar a rua deserta e sem asfalto por incontáveis minutos; já iria acender o segundo quando vi uma ratazana do tipo matrona seguida pela ninhada, cinco ratinhos magricelas, todos cinza-sujo; andavam sorrateiramente em fila indiana na minha direção.
A família começou a fuçar os sacos de lixo jogados ao pé do muro sem se importar com a minha presença. De repente, percebi que alguém se espreitava pelas minhas costas. Era Tiberius: pulou feito fantasma sobre um dos ratinhos.
A matrona, entretida com uma casca de banana, voltou-se com os afiados dentões amarelos, enquanto os outros ratinhos escapuliam.
Tiberius apertava agachado a pequena vítima com a mão direita e mantinha na outra a faquinha em riste, os olhos avermelhados atentos a cada movimento da ratazana.
Estavam a se encarar assim quando de cada saco de lixo despontaram dois ou três ratos raivosos, gordos, enormes. Também emergiram muitos outros da vala. Dezenas de pombos pousaram nos muros e no alto das casas; jurados de um tribunal sumário. Foi uma ocupação silenciosa.
Uma tocaia, meu caro Tiberius! Assustado, ele deixou o ratinho escapar... Antes que pudesse esboçar uma reação, as legiões roedoras caíram sobre ele.
Dilacerado pelas várias dentadas Tiberius mudou de cor; os ratos carregaram o corpo ensanguentado em triunfo e o arremessaram na vala.
Julguei ouvir um dorido miado, um estertor... O corpo boiou levado pela correnteza do esgoto para cada vez mais longe... Os ratos emitiram um som agudo, irritante, a celebração da vingança; os pombos mexeram as cabeças silenciosamente em sinal de júbilo; depois ratos e pombos voltaram seus olhos para mim. Fiz um gesto submisso e eles se dispersaram.
Quando dei por mim já havia anoitecido... Fumei o segundo cigarro... Desci do muro para recolher a faquinha de Tiberius e guardá-la junto ao crucifixo prateado. Decidi acordar a minha mulher e o efebo.
Desejava aproveitar meus últimos dias na Roma Negra.
Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
Ilustração: “In Italian”, de Jean-Michel Basquiat.
Na minha coluna no UOL, escrevi sobre a viagem do recém-falecido Mario Vargas Llosa pelo sertão baiano para escrever o romance “A Guerra do Fim do Mundo”.
A fotografia abaixo é de Raimundo Silva (Agência O Globo).